Batendo água é um chamamé que tem os versos de Gujo Teixeira e a melodia de Luiz Marenco. Mais uma parceria desses dois monstros sagrados do nosso nativismo.
Em entrevista o Gujo contou que a letra e a melodia base surgiram no mesmo dia, em 19 de março de 1997. Na época o Gujo estudava e morava em Santa Maria e o Marenco, tava hospedado com o Gujo, por que estava gravando um disco por lá.
Então a certa hora da tarde, começou a chover forte. E o Marenco disse pro Gujo: Tá batendo água. O Gujo parou, pensou e comentou algo do tipo: Isso dá um tema! Eu faço a letra se tu fizer a música. E se atracou a escrever. Logo já tinha uns versos prontos e em seguida a melodia já saiu.
Alguns meses adiante foi apresentada pela primeira vez ao público. No palco da 17ª Coxilha Nativista de Cruz Alta no ano de 1997 e foi interpretada pelo Luiz Marenco e pelo Jari Terres. Quem fez os arranjos da gaita foi o Leonel Gomez e de violão o Marcello Caminha.
Só que ela não ganhou nenhuma premiação naquele festival, tanto que no CD da Coxilha desse ano ela é a última música do disco.
Mas essa é uma daquelas músicas que não subiram no pódio do festival mas que ganharam o coração do povo logo em seguida. O Gujo lançou essa marca no CD Quando o verso vem pras casa, de 1999, onde todas as músicas são versos do Gujo e são cantadas pelo Luiz Marenco e Jari Terres.
E dali ganhou o mundo. O Marenco gravou em outros CDs, também Os Serranos, Os Monarcas, Garotos de Ouro e teve até versões em espanhol. Segundo o Gujo, no ECAD tem mais de 40 gravações registradas por outras bandas.
Essa música ela carrega sentidos bem especiais com muitas frases fortes e um eito de metáfora bem campeira! Bamo dar aquela destrinchada na letra pra entender bem direitinho o que se canta?
Meu poncho emponcha lonjuras batendo água
E as águas que eu trago nele eram pra mim.
Asas de noite em meus ombros, sobrando casa…
Longe “das casa” ombreada a barro e capim.
Empochar lonjuras seria uma metáfora pra carregar, percorrer as distâncias, a estrada, a experiência. Ou seja toda a vez que o gaúcho pega a estrada ele fica mais experiente.
Asas de noite é o próprio poncho. Pois ele é preto e aí quando tu abre os braços, a gente se diz, abre as asas do poncho.
Casa ombreada a barro e capim é uma referência aos ranchos barreados. Aqueles que são feitos de barro misturado com capim. Ombreada é pq pra erguer o rancho, se carrega sobre o ombro a materia prima da casa.
Faz tempo que eu não emalo meu poncho inteiro,
Nem abro as asas de noite pra um sol de abril…
Faz muitos dias que eu venho bancando o tino
Das quatro patas do zaino, pechando o frio!
Nesses primeiros versos o campeiro fala que está chovendo há tempos pq ele não tem tempo pra emalar o poncho e nem abrir as asas do poncho ao sol pra secar.
Emalar o poncho é enrolar ele e guardar nos sob o lombo do cavalo. Tem um video aqui mostrando com que se emala um poncho.
Bancar o tino é aceitar o desafio, o destino, de ser campeiro.
Zaino é o pelo do cavalo. Marrom meio escuro, lembrando pinhão. Pechando o frio é encarando o inverno, a chuva, o mau tempo.
Troca um compasso de orelha a cada pisada,
No mesmo tranco da várzea que se encharcou…
Topa nas abas sombreras que em outros ventos
“Guentaram” as chuvas de agosto que Deus mandou.
Trocar o compasso da orelha é um movimento que o cavalo faz com a orelha enquanto está cruzando a várzea já alagada. O barulho das pisadas na água faz o cavalo prestar atenção ao seu redor.
As abas sombreras são as abas do chapéu, que já aguentaram outros invernos chuvosos.
Meu zaino garrou da noite o céu escuro
E tudo o que a noite escuta é seu clarim.
De patas batendo n’água depois da várzea…
Freio e rosetas de esporas no mesmo “trim”.
Cai a noite e o campeiro ainda está no tempo. Noite escura, como o pelo do cavalo. No meio da pampa a única coisa que se ouve são os sons do cavalo na água e do metal da barbela com o freio e o trim das rosetas das esporas nas botas do gaúcho.
Falta distância de pago e sobra cavalo
Na mesma ronda de campo que o céu deságua,
Quem tem um rumo de rancho pras quatro patas,
Bota seu mundo na estrada batendo água!
Esse verso representa que o gaúcho tem sempre disposição pra enfrentar as distâncias com muita vontade e determinação. Sobrando cavalo, ou seja… ainda com vigor.
O rumo do rancho pras quatro patas é o seu lar, sua querência. Onde está sua amada e a família. Então quando se tem esse rumo não há o que segure.
Porque se a estrada me cobra, pago seu preço
E desabrigo o caminho pra o meu sustento.
Mesmo que o mundo desabe num tempo feio…
Sei o que as asas do poncho trazem por dentro.
E esse último verso é uma síntese do povo gaúcho. Se a lida, o trabalho, os desafios cobram da gente, pagamos o preço. Fazendo o que for preciso pra garantir o sustento.
Mesmo que debaixo de chuva, frio… com o mundo desabando lá fora, sempre se sabe, se conhece quem está por dentro do poncho. O gaúcho se conhece e se garante.